09 de outubro de 2020 - Thiago Braga

Arena Ponto e Contraponto: Diálogo, Senso Crítico e Conhecimento Científico

O clima de polarização tomou o mundo nos últimos anos. Esse Fla X Flu constante, parece só piorar, ficar mais sério. Há séculos corre uma disputa fervorosa entre modelos econômicos divergentes e quem discute já não se preocupa mais em chegar à conclusões que sejam produtivas para todos, mas em deixar claro que um lado está certo e o outro, errado – aliás, ninguém quer admitir que está errado. Esse padrão acompanha outras tantas discussões, seja na esfera privada ou profissional. O debate deixou de ser uma conversa para se transformar em uma batalha elaborada, separando vencedores e perdedores. E, assim, diminui nossa capacidade de ouvir pontos de vista diferentes e divergentes e, com isso, nossa capacidade de aprender através do diálogo.

A radiologia não escapa dessa disputa. Veja só esse exemplo: quando um radiologista faz um exame, ele encontra anomalias inesperadas, não relacionadas ao objetivo do exame. O que ele faz? Repassa apenas as informações relevantes ao paciente? Ou pede exames adicionais, não importa quão pequena ou insignificante aparenta ser a anomalia detectada ao exame?

É muito comum que exames de imagem detectem anormalidades que não são necessariamente indícios de doenças. O que pesquisadores querem, através do diálogo, é trabalhar pelo estabelecimento de padrões, inclusive éticos, sobre o que deve ser dito ao paciente e o que justificaria uma investigação mais profunda – vale mesmo a pena recorrer a dezenas de exames se a anomalia não indicar riscos ao paciente?

Não é uma discussão simples. Cada lado recorre aos seus próprios argumentos para defender o seu ponto de vista. Independente da opinião de cada lado, o importante deve ser ouvir todos os argumentos, sendo que, ao final, é o médico que tomará uma posição para com seu paciente, e esta posição deve ser a melhor possível.

Temos ampla oportunidade de nos envolver na prática de apresentar argumentos, mas, aparentemente, precisamos de mais prática para respondê-los. Porque, independentemente de nosso raciocínio constituir uma deliberação genuína e racional, ou ser um exemplo de racionalização, muitas vezes não é isso que queremos fazer”, escreve Daniel Cohen, filósofo especialista em teoria da argumentação. “Podemos ser muito efetivos na prática de apresentar argumentos; não somos tão bons para entender argumentos dos outros. Nós não somos tão receptivos a razão quanto achamos que somos”.

Não há muito segredo no que nos motiva a ser assim. É mais confortável confirmar nossas próprias convicções. Melhor, portanto, argumentar até o limite (e se sagrar campeão) do que ouvir o contraponto do outro – e, de certa forma, concordar e repensar o seu próprio ponto de vista. “Argumentadores habilidosos, entretanto, não estão atrás da verdade, mas de argumentos que apoiem seus pontos de vista. Isso explica o notório viés de confirmação. […] O raciocínio usado de forma proativa também favorece decisões fáceis de justificar, mas não necessariamente melhores”, defendem os pesquisadores Hugo Mercier e Dan Sperber.

Em entrevista ao NY Times, Mercier falou sobre a função evolutiva do desenvolvimento do raciocíonio. “Debater não tem a função de nos ajudar a chegar a melhores crenças e decisões”, contou. “É um fenômeno puramente social. Evoluiu para nos ajudar a convencer os outros e a ter cuidado quando outros tentam nos convencer.”

Isso abrange todos os aspectos de nossa vida. Inclusive, a área médica, que vive em constante atualização, e nasce do método científico. A ciência precisa passar pela formulação de hipóteses, testes e experimentos para comprová-la, como também passar pela análise e comprovação da técnica (ou teoria) por outros especialistas para se chegar a uma conclusão. Mesmo assim, esse processo vem cheio de polêmicas – e polarização. Veja por exemplo a polêmica acerca do uso de maconha medicinal no tratamento de várias doenças, entre outras questões polêmicas. Afinal, por que deveríamos prestar mais atenção a um radiologista que usa métodos diferentes? Por que deveríamos nos abrir ao diálogo, com real interesse no argumento alheio, e não em busca da vitória argumentativa?


Razão e argumentação

Essa discussão vem de longa data. Por volta do ano 400 a.C., Platão já estudava o  poder da retórica, dessa intensa busca por vitória em uma discussão – e não da troca de conhecimentos, com base no conteúdo, e não na forma do discurso. Naquela época, alguns pensadores gregos usavam a linguagem como forma de poder pura e simples. Eram hábeis oradores que, em troca de dinheiro, ensinavam a seus aprendizes como convencer e ganhar discussões. Para eles, qualquer opinião era válida e defensável – mesmo se não fosse baseada na verdade ou em evidências científicas (como fazem, atualmente, terraplanistas e negacionistas). A forma importava muito mais do que o conteúdo. Era um jogo. E os sofistas ensinavam como vencer.

Platão se tornou um ferrenho crítico dos sofistas – a linguagem deveria ser um instrumento de descoberta do conhecimento e da realidade, não um produto. Segundo ele, o bom uso da retórica deveria privilegiar a discussão racional, respeitar princípios éticos, reconhecer o interesse na discussão racional dos problemas como forma de definir a verdade. Mas o que é a verdade? É aquilo que a razão consegue captar. Para ele, a crença se sobrepõe à suposição; e apenas o conhecimento científico se sobrepõe aos dois. No senso comum, de acordo com o filósofo, o argumento vem da percepção, e não da razão.

Para chegar ao conhecimento, no entanto, Platão não descartava o outro. Pelo contrário, acreditava no diálogo como princípio essencial para o desenvolvimento humano.

A importância do diálogo


Martin Buber, durante toda sua vida, buscou inspirar a humanidade a escutar o outro. Jornalista, filósofo e teólogo, defendeu a convivência harmônica e pacífica entre árabes e judeus, na época em que o Estado de Israel foi construído.

Para ele, o diálogo era parte fundamental das relações humanas. “Uma conversa real, e, ao mesmo tempo toda realização decorrente da relação entre pessoas, significa a aceitação do outro”. Acreditava que somente essa troca de ideia faria com alguém deixasse de ver apenas a si mesmo e passasse a ver o outro. Enfatizava ainda que, em um diálogo real, não haveria espaço para dominação, vitória ou eliminação de alguém.

Já naquela época, Buber via como impossível essa troca verdadeira. Apostava, no entanto, na necessidade de restaurar essa habilidade humana de dialogar – com uma escuta mútua. Nesse caso, haveria uma diferença entre falar com o outro e para o outro. O primeiro constitui o diálogo, gera uma conexão e troca verdadeiras. Um debate verdadeiro.


Uma forma saudável de debate


Todo debate deve ter um argumento bem estruturado, com base na ciência e em evidências. É quando dois lados, com pontos de vista distintos, até mesmo opostos, apresentam e estudam ideias – e não pessoas ou eventos. Quando se dão conta de que sempre pode haver diferentes perspectivas, em busca da construção de um conhecimento profundo e mútuo. Um debate transforma o conflito em aprendizado e fortalecimento das relações. A partir dessa discussão, construída na escuta e argumentação racional, chegam a um consenso.

Mas o que é um consenso, afinal? É um acordo comum, necessário para formular recomendações práticas. O filósofo alemão Jürgen Habermas definiu “ação comunicativa” como a interação voltada ao entendimento, sem coerção ou manipulação. E é a partir dela que se chega ao consenso, com base em argumentos racionais. Não que seja necessário concordar com tudo. O dissenso também faz parte do processo de diálogo.

Pense na evolução das tecnologias de imagem. Houve (e ainda há) polêmicas em relação ao uso de algumas técnicas em pacientes com diferentes diagnósticos – qual funciona melhor para determinados casos? Ou mesmo à incorporação de novas tecnologias – será que vale mesmo a pena investir naquele aparelho caro, enquanto outras técnicas funcionam tão bem quanto, sem pesar no bolso do paciente, sem onerar tanto o sistema público de saúde? Só há uma chance de avançar: com o diálogo, com a exposição de diversos especialistas, cada qual com as suas próprias experiências práticas. Entre acordos e desacordos, em algum momento, a discussão evolui para um consenso – que pode ou não ser seguido.

Consenso formado a partir de argumentações de especialistas envolve a combinação de julgamentos, reflexões e análise de dados e experiências. As práticas recomendadas na área médica, que se tornam padrão, saem desse contexto. Esse “acordo” gera um novo caminho, uma solução. Voltando à Daniel Cohen, ele observa que, quando um lado escuta um argumento diferente – e aprende com ele – , todos saem vencendo. Basta pensar no trabalho cognitivo durante esses diálogos. Nosso cérebro tende sempre a poupar energia. Não à toa, o simples ato de traçar novos caminho para casa, ou para o trabalho, exige mais atenção e trabalho cerebral. Quando passamos pelas mesmas ruas, ou repetimos ações recorrentes, como trocar a marcha do carro, o cérebro liga o piloto automático.

Na prática, em boa parte do tempo, o cérebro usa aprendizados passados para compreender o mundo – ou seja, corta caminho, o que pode gerar confusão durante um diálogo. “O cérebro sempre conserva energia. Isso significa que ele pega atalhos. Eu posso estar cometendo erros claros com você ao pensar que você entendeu. Você, como ouvinte, pode estar cometendo erros ao assumir que entendeu algo. Mesmo em dias bons, nossa comunicação verbal é pobre e nos desentendemos o tempo todo. Isso só fala sobre a imperfeição da comunicação humana mundo afora”, explicou o psicólogo e pesquisador Stan Tatkin, em entrevista à revista Time.

Para além dos desentendimentos, ouvir o outro e mudar de ideia exige muito mais do nosso cérebro. Um gasto de energia maior para avaliar os padrões já conhecidos – ou os caminhos pré-traçados –, questioná-los e avaliar se repensar determinados posicionamentos faz ou não sentido. Mas há ganhos: esses novos caminhos também geram novas conexões cognitivas, que formam novos aprendizados – e nada mais importante do que a construção de novas aprendizados dentro de uma área em constante evolução como a radiologia; afinal, como aprender com tanta informação nova se não por meio do diálogo?

Acontece que para se chegar a uma discussão rica é preciso uma técnica importante: a escuta ativa, ou seja, com real interesse pelo outro. Não adianta apenas ouvir, sem atenção, e se calar. É preciso entendimento do outro. Aliás, pesquisadores da área médica dão ao termo outro nome: escuta terapêutica. E a julgam como essencial na prática médica. “A escuta apresenta-se como uma estratégia de comunicação essencial para a compreensão do outro, pois é uma atitude positiva de calor, interesse e respeito, sendo assim terapêutica”, escrevem as enfermeiras Ana Cláudia Mesquita e Emilia Campos de Carvalho. “A utilização da escuta passa a valorizar a pessoa como sujeito que busca e é capaz de se desenvolver. A Escuta Terapêutica é apreciada por diversas escolas psicológicas e pelo senso comum, representando a base de todas as respostas efetivamente geradoras de ajuda. No cuidado, a escuta pode minimizar as angústias e diminuir o sofrimento do assistido, pois por meio do diálogo que se desenvolve, possibilita ao indivíduo ouvir o que está proferindo, induzindo-o a uma autorreflexão”, concluem.

Em uma discussão com colegas de profissão, quando praticamos o exercício da escuta ativa e do diálogo, somos obrigados a rever conceitos, repensar pontos de vista já tão habituais. Ouvir ativamente não se resume a apenas se calar enquano o outro fala. Significa demonstrar interesse . E isso traz um esforço e ganho cognitivo – obriga o cérebro a desligar o piloto automático.


Pensamento crítico

Essa construção do debate alimenta o pensamento crítico. Ou seja, a capacidade de tomar decisões frente a uma nova situação. É o que acontece na radiologia ao interpretar exames ou sugerir tecnologias diferentes para cada paciente. Isso exige algumas qualidades: capacidade de análise, comunicação, criatividade, mente aberta e facilidade na resolução de problemas.

Todas essas características coincidem com a boa prática do debate. Uma pessoa com pensamento crítico deve saber como avaliar dados e pesquisas, questionar evidências, reconhecer padrões, escutar ativamente, saber se expressar, buscar novos conhecimentos, ter uma curiosidade aguçada, trabalhar bem em equipe, inovar. Sempre guiado pela razão e ciência.“Para pensar criticamente, você deverá colocar de lado suposições ou julgamento e simplesmente analisar as informações que recebe. Precisa ser objetivo, avaliar ideias sem vieses”, escreve o americano Alison Doyle, da Universidade de Indiana.

Debates a partir do pensamento crítico servem para qualquer área – mas na área médica é ainda mais fundamental. Há mais de quatro décadas, a prática clínica leva anos para se se consolidar em procedimentos padrões, construídos ao longo de anos de estudos, levando em conta evidências científicas e a construção de consenso entre especialistas. Mas a tecnologia, principalmente na radiologia, sofre constantes revoluções. É tanta novidade que os pesquisadores não dão contam de apresentar estudos metodológicos ricos para determinar quais os melhores usos a cada uma delas.

O uso tem sido orientado por relatórios metodologicamente pobres, que tendem a exagerar a performance das novas técnicas, estimulando ainda mais sua difusão e uso. O resultado final é a suspeita de que tecnologias caras, como tomografia computadorizada e ressonância magnética, estão sendo usadas com mais frequência do que o necessário em que pese a relação custo-benefício para o cliente”, relata o radiologista Bruce J. Hillman.

Arena Ponto e Contraponto para o pensamento, o argumento e o aprendizado

A importância do debate entre radiologistas é que estimula o desenvolvimento do pensamento crítico e da escuta ativa, favorecendo o aprendizado. Aqueles radiologistas que possuem o pensamento crítico sistematizado em sua prática diária detém uma maior capacidade de resolver problemas e são mais valorizados por isso. Como chegar a isso? Com debates!

Grandes polêmicas da Radiologia serão discutidas na Arena Ponto e Contraponto na 49ª edição do Congresso Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (CBR 20). Discussões não para levar ao pódio os vencedores. Todos ganham nessa jogada – debatedores e público. Com base no diálogo e na discussão saudável, a Arena tem o propósito de fomentar o pensamento crítico e de fortalecer um ambiente com segurança psicológica, na qual o medo de expressar opiniões opostas não impede o debate. Na realidade, o medo deixa de existir – ou, ao menos, de predominar. Assim, as pessoas se sentem mais à vontade para compartilhar ideias e inovar.

Por isso, em cada painel, dois profissionais com pontos de vista diferentes vão discutir suas experiências, apresentar seus achados, seus pontos de vistas e suas perspectivas.

Serão vários encontros no sábado e domingo (dias 10 e 11 de outubro) à tarde, com um moderador e tempo de 20 minutos para cada debatedor expor a sua visão – ponto x contraponto. No tempo restante, os participantes se encaram, se questionam e respondem às questões do público, que participarão por meio de um chat.

A ideia é mesmo criar provocações e papos acalorados – será a primeira vez que o Congresso aposta na soma desses formatos: arenas, aulas tradicionais e debates. E não sem um propósito: é por meio do debate, do questionamento com base na razão e em evidências, da escuta ativa, que a ciência evolui. É assim que desenvolvemos novos aprendizados. E quando a ciência evolui, nós também evoluímos como seres humanos!

Não sabemos o que não sabemos. Ao reconhecermos isso, compreendemos que a vontade de entender e pluralizar nosso conhecimento é o que os faz crescer. Então, venha participar, questionar e aprender ainda mais conosco! Participe dos eventos do CBR 20!