23 de setembro de 2020 - Thiago Braga

Lifewide Learning: Transformando a sua aprendizagem

Talvez o médico José Carlos Ferreira Pires (1854-1912) ficasse incrédulo ao saber que, hoje em dia, uma radiografia de tórax leva poucos minutos. Quando ele trouxe o primeiro aparelho de raio-x ao Brasil, em 1897, os pacientes passavam meia hora de pé. Imagine, então, mostrar a ele uma ultramoderna imagem do crânio, colorida e bem detalhada – como interpretá-la? E se um médico do século 21 contasse a ele que uma máquina, munida de inteligência artificial, poderia ajudar nesse processo de interpretação de exames?

Impossível imaginar tal cena sem considerar a imensa distância temporal e tecnológica que separa os personagens antigos e atuais da radiologia. Em pouco mais de um século de existência, os exames de imagem deram um salto gigante – do analógico ao digital. Hoje, milhares de imagens são geradas em um só exame de radiologia torácica, por exemplo. E apenas o conhecimento e atualização desses profissionais garantem o diagnóstico preciso.

Se o século 21 deixa para trás quem não se atualiza, entre os profissionais da área médica essa corrida ao conhecimento é ainda mais importante. É certamente o caso da Radiologia. Na intensa discussão sobre o futuro da carreira, há apenas uma saída: estudar e entender o papel complementar de tecnologias emergentes e exponenciais como a inteligência artificial. Daqui a uns 10 ou 15 anos, um bom radiologista não será mais aquele médico com um “bom olho”, que pesca todos os detalhes de um exame e chega ao diagnóstico. Mas sim aquele que entender sobre processamento de linguagem, análise de dados, e sistemas de aprendizagem de máquinas (machine learning) e principalmente, entender de relações humanas e de sucesso da experiência do paciente.

Um radiologista desatualizado, nesse curto período de pouco mais de uma década, tomará o mesmo susto que Dr. Pires, caso desembarcasse por aqui em uma máquina do tempo. As mudanças serão bruscas. Algoritmos já estão sendo utilizados para a análise de imagens e para se chegar um veredicto sobre o paciente – e farão isso com cada vez mais rapidez e eficiência do que qualquer médico, com uma coleta bem mais completa de dados. Aos radiologistas caberá a fiscalização dos diagnósticos identificados por essas máquinas, conferindo as imagens e os resultados, – daí a importância em dominar essas novas tecnologias –, e outras tarefas, como avaliar o histórico médico anterior e os resultados de exames físicos. O valor do radiologista estará na sua capacidade de sintetizar uma infinidade de conhecimentos médicos, imagens e dados clínicos, e articular precisamente o que eles implicam.

Para isso, a busca por atualização precisa ser constante e ao longo de toda a vida. Mas isso não precisa ser levado como um fardo, é uma busca inerente ao ser humano.

A pandemia – para não sair da área médica – tornou evidente este renovado interesse da humanidade pelo aprendizado. Segundo o Google, as buscas por cursos on-line cresceram 130% nos primeiros dias de abril de 2020, quando o isolamento social ainda começava por aqui. Nas universidades, os alunos digitais também aumentaram: a demanda por cursos virtuais aumentou em 400% na Fundação Getúlio Vargas naquele período, em comparação aos meses de janeiro e fevereiro de 2020.

É como se as pessoas tivessem, enfim, percebido as oportunidades fora dos tradicionais centros de educação, cursos de especialização ou pós-graduação – uma visão que também precisa atingir os radiologistas. Considerar cursos rápidos ou livres como aprendizado ainda soa como passatempo – ou como um ponto irrelevante no currículo. Como se não fosse uma forma real de aquisição de conhecimento. Isso porque muita gente ainda enxerga a educação sob a antiga ótica industrial: professor ensina, alunos aprendem, numa metodologia que pretende alcançar a todos uniformemente, sem chance para o desenvolvimento de talentos diferenciados, dentro de espaços de ensino convencionais. Mas a verdade é que passamos pouco tempo nos bancos da academia: segundo Conrado Schlochauer, especialista em aprendizagem, gastamos apenas 3% da vida dentro do ensino formal.

A longa estrada do aprendizado acontece também nos 97% de tempo restante da nossa história. E a tecnologia favorece esse processo eterno de aprendizado. É sobre isso que pretendemos falar a seguir: do protagonismo de cada um como criador do conhecimento. Com base em um conceito relativamente recente dentro da educação, o lifewide learning – que certamente ajudará na capacitação dos melhores radiologistas do futuro. Aqui, toda fonte de aprendizado conta.


Lifelong Learning e Lifewide Learning

Autor: Tom Parks

Há muitos séculos, mais precisamente desde os anos 1500, teóricos discutem a necessidade de manter o aprendizado ao longo da vida. Jan Amos Moenius, pedagogo, cientista, escritor e educador, falava sobre oito escolas – desde antes do nascimento até a “escola de morrer”. Muito tempo depois, em 1833, o educador alemão Alexander Kapp, criou um um novo termo: andragogia. Nada mais era do que estratégias de aprendizagem voltadas para adultos. Assim como seu antecessor, ele reforçou a necessidade de manter a educação ao longo de toda a vida.

Essa discussão seguiu forte ao longo do século 20, quando as mudanças tecnológicas eram cada vez mais frequentes, a universalização da educação formal começou a virar realidade, mas com desigualdades ainda permanecendo, bem como chegaram as novas necessidades de qualificação da força de trabalho. Em 1997, a Unesco promoveu um encontro sobre educação e popularizou o termo “lifelong learning”. Não há mistério no conceito. A ideia é que sigamos em constante atualização; que o aprendizado se mantenha em cada etapa da vida.

Naquele ano, no entanto, a Unesco colocaria um aspecto ainda mais amplo ao conceito de aprendizado na vida adulta. “Todo o conjunto de processos de aprendizagem em curso, formal ou não, pelos quais as pessoas adultas desenvolvem as suas capacidades, enriquecem os seus conhecimentos e melhoram as suas qualificações técnicas ou profissionais ou os encaminham para um novo rumo para ir ao encontro de suas próprias necessidades ou da sociedade”, dizia o documento.

Era uma nova etapa. Até então considerava-se apenas o ensino convencional, dentro das instituições como formas palpáveis de aprendizado. Não que especialistas mais antigos não tivessem questionado essa estrutura. Em 1926, Eduard Lindeman, autor do livro “The meaning of adult education” (O significado da educação adulta, em tradução livre) sugeria formas de educação não ligadas às salas de aulas e currículos formais. Por motivos básicos. Se somos essas tais máquinas de aprendizado, como considerar apenas o conhecimento adquirido com a ajuda de especialistas, dentro das salas de aulas? E todas as experiências e situações que passamos ao longo da vida? Não contam como aprendizado?

Contam. E daí vem o conceito de Lifewide Learning, algo como aprendizado amplo de vida, ou que abarca todos os aspectos da vida. Assim, as universidades, para citar um espaço formal, extrapolam os limites das salas de aula. Os espaços de convivência, refeitórios, esporte e lazer fornecem conhecimento, com a troca constante de experiências e ideias. Aulas extracurriculares ou programas de voluntariado também. Nesse conceito, tudo é aprendizado, mesmo se o objetivo principal for simplesmente uma diversão, como ir ao museu ou ler um livro. Essa ideia não serve apenas aos profissionais altamente qualificados, como os radiologistas, que querem se manter atualizados. Lifewide Learning, justamente por não se restringir aos saberes técnico-aplicados, precisa ser universal e inclusivo.

Segundo Ronald Barnett, em artigo publicado no livro “Learning for a Complex World: A Lifewide Concept of Learning, Education and Personal Development”, a diferença entre Lifelong e Lifewide Learning é simples. “Lifelong é o aprendizado ao longo do tempo e, idealmente, como o termo sugere, dura a vida toda. (…) Vemos a educação universitária como uma etapa nessa série de estágios da jornada. Em essência, lifelong learning é uma série de experiências de aprendizados em sucessivas zonas de tempo de uma vida”, escreve Barnett. “Lifewide learning, em contraste, são aprendizados em diferentes espaços simultaneamente. É literalmente o aprendizado através da vida de um indivíduo a qualquer momento”.

É importante considerar outros aspectos da vida como fontes de conhecimento, para além dos muros da educação formal. Até porque, de acordo com pesquisa do LIFE (Learning in Informal and Formal Environments), uma fundação de pesquisa americana especializada em aprendizagem, o tempo gasto em instituições formais depois da entrada no mercado profissional é mínimo. Durante a fase do colégio, gastamos 18,5% do dia na escola; depois, durante a passagem pela pós-graduação esse tempo cai para 5%; e só diminui ao longo do tempo, quando o trabalho e a família dominam nossas vidas.


Como radiologistas podem aprender com o lifewide learning?

‍A primeira vantagem é clara: com o caminhar ligeiro da tecnologia, quem quiser seguir na radiologia precisará – e muito – acompanhar seus avanços. Mas há outros benefícios. Essa busca autônoma pelo conhecimento, característica do lifewide learning, gera motivação, estimula a criatividade e a confiança. Em pesquisa realizada pela Universidade de Surrey, em Guilford (Inglaterra) citada por Barnett, os alunos que buscaram experiências extracurriculares – das mais variáveis possíveis, como voluntariado na Unicef ou engajamento em um time esportivo – citaram inúmeras vezes palavras como “entusiasmo”, “confiança” e frases do tipo “aprendi a lidar com a pressão”.

Fácil entender os motivos. Imagine a pressão, interna e externa, sobre um radiologista que, em 10 anos, não faça a menor ideia de como os robôs inteligentes funcionam. Dá para imaginar dezenas de balõezinhos de dúvidas pipocando na cabeça deles: “será que vou perder meu emprego?”, “será que esse diagnóstico indicado pela máquina está mesmo certo?” Por outro lado, um profissional atualizado se sentirá muito mais confiante e animado com o uso complementar das novas tecnologias. Saberá tirar proveito dessa nova realidade para melhorar sua própria qualidade de vida e mesmo sua produtividade.

Por isso, essas experiências, assim como a participação voluntária em cursos livres, se tornam tão importantes. Elas auxiliam na construção do que o a Unesco classifica como o futuro da educação: a transformação do “ser integral”, que une a inteligência emocional ao domínio de técnicas profissionais.

Uma das ideias do lifewide learning é justamente mostrar às pessoas essa capacidade de autoaprendizado, de se transformarem nesse tal “ser integral”. “Ao ajudá-los a se tornarem mais conscientes de sua presença no mundo, temos o potencial de vê-los ganhar entendimentos mais profundos sobre como as partes de suas vidas se conectam e como esse desenvolvimento adquirido de diferentes experiências está integrado para torná-los aptos a se tornarem quem eles querem ser”, escrevem Colin Beardand e Norman Jackson.

E aí vêm os segredos para desenvolver – ou aprimorar – a habilidade de aprendizado autônomo. O primeiro é se envolver com assuntos que realmente lhe interessem. Um radiologista mais idealista pode se sentir muito mais confortável ao se envolver com projetos sociais, como o Médico Sem Fronteiras – e travar o desafio de fazer diagnósticos à distância em pacientes de países em desenvolvimento, com graves conflitos militares. Outros podem preferir focar na radiologia intervencionista. O ideal é encontrar o seu ideal. Em geral, ninguém usa a palavra “entusiasmo” quando faz tarefas desconectadas de seus valores, sem um interesse pessoal pelo tema, como disseram os alunos de Surrey. Só assim você é capaz de despertar o sentimento de pertencimento, e estar realmente presente. “O aprendiz deve estar ativamente presente e consciente de suas interações com o ambiente material e social”, explana Knud Illeris. Uma das necessidades fundamentais hoje é aprender a ser aprendiz.

Outro segredo parte do envolvimento em tempo real com os problemas inesperados. É parte do aprendizado: você precisa aprender a colocar os seus conhecimentos (todos eles, inclusive habilidades interpessoais de relacionamento) dentro de novos contextos. Seja em uma situação de emergência frente a um paciente, ou diante de um exame intrigante e desconhecido. A nova forma de aprendizado é fazer um balanço do resultado dessas ações – do entusiasmo, da resolução – e avaliar se funcionaram bem ou não. Autoanálise também faz parte do processo autodidata de aprendizado.

Um verdadeiro aprendiz lifewide capta as mensagens em todos os ambientes e momentos. Presente, ele percebe onde errou ou acertou, ou simplesmente qual o aprendizado proveniente daquela experiência – seja ao assistir um filme ou realizar uma telerradiologia em um paciente no interior da Amazônia.

Desafios e tendências

Autor: Joshua Fuller

Nessa nova realidade, as principais tendências econômicas são o desenvolvimento tecnológico, a mudança econômica estrutural e, por consequência, uma demanda maior por competência e aprendizado ao longo da vida. Não dá mais para aprender de uma só vez o necessário para exercer um trabalho.

“Conhecimento e competência tornam-se um bem ‘perecível’. Em parte por consequência do desenvolvimento tecnológico, a organização dos locais de trabalho também está mudando. Modelos hierárquicos são desmontados para abrir espaço para organizações mais planas nas quais as demandas individuais por competência aumentam. A sociedade do conhecimento não é mais um sonho, mas uma realidade atual”, escrevem pesquisadores da Agência Nacional de Educação Sueca no livro “Lifelong learning e lifewide learning”.

A própria tecnologia oferece as oportunidades de um aprendizado eterno para todos. Mas gera também um desafio à educação: como dinamizar e expandir os ambientes tradicionais de aprendizado? Como envolver essas experiências pessoais nas rodas de ensino, a favor do lifewide learning? Como transformar um curso em algo semelhante à troca de ideias que acontece nos refeitórios e corredores dos hospitais? É preciso levar o que ocorre naqueles outros 97% de nossas vidas para um ambiente de aprendizagem, mas sem o peso dos tradicionais métodos de ensino – de cima para baixo, com currículos pré-determinados por especialistas. O compartilhamento de experiências também gera conhecimento. É preciso ainda alterar as visões tradicionais sobre o aprendizado. Nenhum radiologista precisa mais voar milhares de quilômetros para ter uma aula com os principais nomes da área – eles estão a apenas uma tela de distância. Ensino virtual já é uma tendência. Mais do que isso: uma oportunidade para ampliar o acesso ao conhecimento.

Não à toa, o CBR20 – 49ª edição do Congresso Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem, que acontece de 4 a 11 de outubro, criou duas arenas. Em uma, residentes podem colocar seu conhecimento à prova com quizzes e testes. Numa outra arena, médicos seniores se enfrentam e confrontam seus aprendizados.

O CBR20 levou a sério a importância de aliar o compartilhamento de aprendizados individuais – aquela coisa de levar o papo de refeitório aos cursos – ao saber-estudado e o saber-fazer. O Congresso promove uma mistura entre o tradicional e o novo. Há espaço para aulas no estilo tradicional e para cursos práticos com visualizadores de imagens e casos desafiadores. Há ainda a Arena Ponto e Contraponto, onde dois especialistas com visões opostas discutem sobre procedimentos e temas polêmicos, e a Rádio Expandida, aberta para o público mais amplo. Em todos esses ambientes 100% virtuais, o público pode participar com comentários e dúvidas. Fica assim, o convite a todos os congressistas para aproveitar ao máximo o CBR20. É um amplo ponto de partida para o aprendizado ao longo e em todas as faces da vida.

A sua participação no Congresso depende da busca dirigida pelo conhecimento. E ela perpassa também pelas experiências vividas e apreendidas em eventos repletos de outros radiologistas, em situações diversas – sejam elas tradicionais ou mais modernas. Participe!