23 de setembro de 2020 - milena

Transformações de Mundo e os Desafios das Novas Texturas da Radiologia

O ano é 2025, em alguma cidade no interior de São Paulo. Dr. Rafael toma calmamente seu café da manhã – um menu especialmente elaborado por sua “chef” & assistente pessoal” Alexa, que busca melhorar seus indicadores de saúde (colesterol, triglicérides, glicose e outros). Sua geladeira está conectada via IoT também ao seu plano alimentar. Enquanto toma o café, Alexa lhe transmite por voz as principais informações curadas exatamente para ele, como também lhe passa qual será a trilha de aprendizagem personalizada por algoritmos naquele dia. Desde o ano passado, com a plena adoção da Telerradiologia, se sente menos estressado pois foi desobrigado a ter que passar longas jornadas em hospitais e clínicas, indo no máximo duas vezes por semana ao trabalho. Em sua casa, ou onde estiver, usa uma tecnologia que renderiza em 3D imagens de ultrassom em realidade aumentada, com perfeita exatidão e em tempo real. Softwares de inteligência artificial (IA) o auxiliam nos diagnósticos. Um dos avanços rumo à medicina de precisão que Dr. Rafael vem se aperfeiçoando é a radiogenômica permitindo que consiga analisar a correlação entre as características do câncer obtidas por imagem e a expressão gênica, com melhores métricas para diagnósticos mais precisos; organicamente, ele vem diversificando novas habilidades e buscando conhecimentos em genética e saúde populacional.

Nesse exato momento, Dr. Rafael é notificado que uma senhora tinha chegado cedo ao hospital com dor no peito, Dímero-D elevado, histórico de anticoagulante lúpico e TVP em veia femoral esquerda. Seus dados clínicos já haviam sido compilados e analisados pela IA em nuvem e a probabilidade de a paciente ter uma embolia pulmonar (EP) foi considerada alta. O próprio algoritmo recomendou que fosse feita uma angiografia por tomografia computadorizada. Importante ressaltar que não foi o médico radiologista que solicitou a angio-TC e sim o algoritmo de aprendizado de máquina baseado em uma montanha de dados e de documentos, que leu e interpretou de forma instantânea e fluida. A paciente realizou o exame e a IA de fato acertou em apontar a EP. O algoritmo também analisou as estruturas ósseas, o coração e o parênquima pulmonar, apontando anormalidades e fazendo recomendações clínicas e radiológicas. O exame (e o diagnóstico) foi então encaminhado para a pulseira do Dr. Rafael via aplicativo, que o analisa logo após levantar-se da mesa e ir em direção ao seu home office.


Ao imaginarmos esse possível futuro, a questão que surge é: qual será o principal papel do Dr. Rafael e de seus colegas radiologistas daqui pra frente?

Em 2025, a sociedade como um todo já entende melhor o impacto do coronavírus que atingiu o mundo em 2020 a partir de uma perspectiva sistêmica evolutiva. Olhando para os últimos 5 anos – turbulentos e recessivos devido à crise pandêmica –, parece óbvia a nossa interdependência interconectividade. Há uma crescente consciência humana de como realmente o planeta funciona e de que o crescimento econômico desenfreado culminou em crescentes perdas sociais e ambientais, que provocaram colapsos, desigualdade, pobreza, doenças, perda de confiança nas instituições, e também levaram às pandemias do século XXI, SARS, MERS, AIDS, influenza e coronavírus.

Cinco anos à frente, as pessoas estão mais preparadas para os “elefantes-negros” que são aqueles eventos extremamente prováveis e amplamente previstos, mas geralmente ignorados, e que as pessoas tendem a considerá-los como um “cisne negro” quando acontecem, como foi o caso da pandemia da COVID-19 que já tinha sido prevista e que custou milhões de vidas. Com o avanço da IA e da Big Data, já é possível aprender com pandemias passadas, reunindo dados relevantes e depurando o conhecimento para se criar ambientes mais resilientes, e se preparar melhor para se responder a potenciais crises sanitárias como novas pandemias.

Elefante negro (Black Elephant) é um evento provável e amplamente previsto, geralmente ignorado. Cisne negro (Black Swan) é um evento “extremos”, que vai muito além de nossas observações e pode ser considerado um outlier, “um ponto fora da curva”. A Água-Viva Negra (Black Jellyfish) representa eventos e fenômenos que não foram previstos ou imaginados (Cortesia da imagem: Day One Futures).

Retornando à 2020, já começamos a sentir na pele estes “tempos pós-normais”. Já sentimos que a noção de velocidade vem mudando. Tudo passa a ser digitalizado e torna-se exponencial. A aceleração está acelerando! O que costumava levar anos, agora pode ser realizado em dias, ou até segundos. A taxa em que o “novo” derruba o “obsoleto” é espantosa. Um exemplo? O software GPU fabricado pela Nvidia, em 2015, precisou de 25 dias para treinar o ResNet-50, um algoritmo extremamente complexo (indiscutivelmente mais complexo do que a maioria de todos os algoritmos de imagem); em julho de 2020 o novo GPU permitiu que esse aprendizado levasse apenas alguns minutos; se esse ritmo se mantiver, em 2025, levará segundos.

O mundo não apenas se move mais rápido, mas também está se tornando um lugar “menor”. Um pequeno evento, em uma pequenina aldeia, pode impactar extremos opostos do globo em grande velocidade. As viagens aéreas e o movimento internacional constante de bens e serviços podem espalhar um vírus de uma vila e transformá-lo em uma pandemia global em questão de semanas e dias. A transmissão de notícias 24 horas por dia de forma quase imediata e as mídias sociais podem transformar uma notícia insignificante em um espetáculo global em questão de minutos.

A noção de escala também muda. Eventos globais rapidamente têm impacto comunitário e individual. O que acontece em nível internacional afeta a vida das pessoas em todo o planeta – crise financeira, pandemias, terrorismo, mudanças climáticas, desenvolvimento de novos aplicativos, vigilância e até escassez de equipamentos médicos. Não podemos mais ignorar o que acontece em algum canto remoto do planeta, porque o impacto desses eventos rapidamente é sentido em todo o mundo.

Incertezas, caos, contradições e complexidade caracterizam tempos pós normais. Foto da exibição Post Normal Times, no The Museum of Contemporary Art in Antwerp (M HKA).

volatilidade que é característica do mundo VUCA se torna ainda mais acentuada com a proliferação da simultaneidade. Crises não são mais localizadas – em uma determinada comunidade e na vida dos indivíduos – mas várias delas tendem a aparecer de uma só vez! O avanço tecnológico nos permitiu mapear com clareza os efeitos de uma crise econômica, de uma crise política, que ocorrem simultaneamente a uma crise de saúde pública. Em 2018, as epidemias do Ebola e MERS ocorreram simultaneamente. Atualmente, a maioria das descobertas e invenções científicas são feitas simultaneamente por vários grupos de cientistas. Um único evento pode acionar uma cadeia de eventos que leva à simultaneidade de todos.

Diante destes tempos pós-normais, como os radiologistas podem se preparar?

A principal arma ou ferramenta para lidar com tempos incertos e complexos é o desenvolvimento da própria capacidade de navegar neles. E para isso, a capacidade de estarmos em constante aprendizado é fundamental. Como propõe Astro Teller, head do laboratório de pesquisa do Google (X Company), a única forma de se manter estável atualmente é estar em movimento o tempo todo. Utilizando a metáfora da bicicleta: estamos em equilíbrio quando estamos pedalando. Foi o que Teller chamou de “estabilidade dinâmica”. E é exatamente disso que trata um dos conceitos mais falados em relação às habilidades necessárias para lidar com o futuro: lifelong learning ou aprendizagem contínua – uma importante via não só para pensar a educação, mas também o trabalho no século XXI. Esse conceito vai muito além da educação formal, reconhecendo que a fonte desta educação continuada, é múltipla, vasta e proveniente de inúmeros domínios.

O gráfico acima mostra o progresso científico e tecnológico ao longo do tempo (eixo Y) e como a humanidade – indivíduos e sociedade – se adaptam às mudanças. Thomas Friedman, em seu livro Thank You for Being Late, explica essa teoria, bem como as mudanças na curva, que são baseadas em uma conversa com Astro Teller. (Cortesia: Embedded Computing Design)

O conceito de lifelong learning se aplica perfeitamente aos desafios que estão por vir na área da Radiologia para que os profissionais se mantenham relevantes. A dimensão do lifewide learning (educação que abarca todos os aspectos da vida) enfatiza a complementaridade entre aprendizagens formais, não formais e informais. A aprendizagem evolui do acumular conhecimento para trabalhar em fluxos de conhecimentos com um mindset transdisciplinar de colaboração humano-tecnológica. É análogo a aprender a dominar um único instrumento versus aprender a reger uma orquestra.

Dr. Atul Gupta, chief medical officer for Image-Guided Therapy, na Philips, considera que a colaboração seja a capacidade mais importante que os radiologistas precisem estar atentos e desenvolver. “Muitas vezes, outras especialidades nos chamam para resolver problemas que são únicos e singulares, e isso me permite, como radiologista intervencionista, ser criativo. Se eu avançar 10 ou 15 anos, não ficaria surpreso em ver uma indefinição entre as especialidades, porque muitos dos procedimentos que fazemos estão cada vez mais sobrepostos. Quem hoje é especialista em isquemia crítica de membro (CLI), ou AAA, ou doença venosa? Muitos cardiologistas, cirurgiões e radiologistas intervencionistas. Acho que estamos começando a ver médicos se juntando e aprendendo várias especialidades. Vi cirurgiões vasculares, cardiologistas e radiologistas ingressando no CIRSE.[…] também vemos várias especialidades se unindo. Nenhum de nós trabalha no vácuo, portanto, ultrapassar limites [silos] para atender o paciente é extraordinariamente importante, não apenas para os médicos, mas também para toda a indústria. A colaboração leva ao que há de melhor em inovação.”

Com o crescimento do trabalho remoto – assim como da Telemedicina e da Telerradiologia – a capacidade de colaboração torna-se ainda mais importante para que médicos trabalhem de forma produtiva, participativa e colaborativa em equipes virtuais, gerando engajamento e confiança entre seus pares ou pacientes.

Uma das coisas que realmente precisa melhorar é a qualidade da precisão do diagnóstico, acredita Dr. Samir S. Shah, que atua como VP de Operações Clínicas para a Radiology Partners. “Nós, radiologistas, somos humanos, cometemos erros. […] Então, acredito que a IA é uma ótima maneira de verificar e aferir o trabalho dos radiologistas. Pode ser uma ferramenta incrível sem o estigma dos atuais sistemas de revisão por pares, que não se concentram na aprendizagem.”

Como um “motorista” de carro autônomo ou um piloto de avião que utiliza o piloto automático – nesse caso a IA –, é como se o radiologista conhecesse seu plano de rota (ou de voo) por dentro e por fora, estando pronto para assumir o controle a qualquer momento.

Embora os radiologistas não saibam como construir um equipamento de ressonância magnética, sabem como funciona o conceito fundamental. O mesmo se aplica à IA. “Não vamos saber como fazer nosso próprio algoritmo ou modelo, mas temos que entender quais foram os princípios que entraram e como foi desenvolvido. […] Acho importante para os futuros radiologistas estarem familiarizados com muitos dos conceitos que, infelizmente, não estão sendo ensinados agora. […] não nos ensinam como funciona um sistema de IA, ou o que é ciência de dados e assim por diante.”, alerta Dr. Matthew Lungren, diretor do Stanford AIMI Center; professor assistente de Radiologia Pediátrica da Stanford University Medical Center.

Neste vídeo, Dra Nina Kottler, Vice-Presidente de Operações Clínicas da Radiology Partners, explica como acredita que a inteligência irá transformar a prática radiológica. (Crédito: Applied Radiology)

O problema é que, como acredita Dra. Nina Kottler, os jovens radiologistas não estão sendo preparados para o futuro da profissão. Dra Nina, que é Vice-Presidente de Operações Clínicas da Radiology Partners, defende que é preciso entender o básico de como os algoritmos funcionam para poder falar a linguagem da IA e dos dados e compreender os potenciais vieses. “Os radiologistas do futuro precisarão dar orientações e conselhos com base no conhecimento gerado a partir desses sistemas. Também precisamos de radiologistas que possam traduzir casos clínicos para desenvolvedores de IA para garantir que os novos modelos que sejam criados agreguem valor aos nossos pacientes e aos sistemas de saúde.”

Em resumo, os radiologistas hoje precisam de treinamento orientado sobre aprendizado de máquina para entender o que pode dar errado e identificar quando algo dá errado.

A radiologia está na vanguarda de muitos avanços tecnológicos na medicina, mas os radiologistas precisam ajustar suas perspectivas se quiserem continuar tendo relevância”. Essa foi a mensagem dada pela médica Valerie P. Jackson, presidente da Radiological Society of North America (RSNA), no encontro anual em 2019. Ela pediu aos radiologistas que busquem criar uma conexão mais direta com o paciente. Para ela, os radiologistas precisam examinar mais de perto a experiência dos pacientes e se perguntar como se sentem, o que eles querem saber, como gostariam de ser tratados. “É preciso criar uma nova cultura de interação com o paciente dentro da radiologia”, diz ela.

Daremos passos maiores na próxima década para desempenhar um papel mais integrado no atendimento ao paciente.” –  Jonathan Flug, MD, radiologista musculoesquelético da Mayo Clinic, em Phoenix.

Voltando à nossa pergunta inicial: qual será o principal papel do Dr. Rafael e de seus colegas radiologistas daqui pra frente?

O acesso global a uma computação mais potente, 5G e uma maior conectividade democratizará ainda mais o conhecimento e a experiência médica. Isso levará a um futuro onde todos os médicos (não apenas os radiologistas) irão desenvolver conhecimento especializado em imagens médicas em sua prática diária com a disseminação da experiência em diagnóstico por imagem pela tecnologia – eliminando a necessidade de interpretação e entrega dentro do domínio de uma especialidade totalmente separada da forma como acontece hoje.

Na próxima década, serão as habilidades pessoais dos radiologistas que nos tornarão indivíduos valiosos na área da saúde”, acredita Arun Krishnaraj, MD, MPH, radiologista professor e chefe da divisão de Imagem da Virginia University. “Será nossa capacidade de integrar e navegar no vasto tesouro de dados em uma variedade de silos para estar no nexo da saúde que nos tornará os condutores de tomadas de decisões”, complementa.

Em vez de ser o radiologista que interpreta mais e mais imagens e no afã de um tempo de resposta mais curto, Krishnaraj, recomenda que seja aperfeiçoada a comunicação direta com os pacientes, aprimorando habilidades de consultoria com médicos de outras áreas e modelando colaborações com patologistas, geneticistas e outras especialidades. “E, a qualquer momento”, diz ele, “esteja disposto a abraçar qualquer nova habilidade que apareça”.

Os radiologistas do futuro irão atuar como especialistas em informação, contextualizando todas as informações de diferentes sistemas de IA e usando-as para consultar e se comunicar com médicos e pacientes. Eles terão muito mais ferramentas para revisar estudos com os pacientes, dar resultados e feedbacks instantâneos e os pacientes terão melhores maneiras de acessar suas imagens e resultados.

Diante de tantas incertezas e desafios, queremos convidar você a navegar nestes tempos de mudança, junto com os profissionais mais preparados e atuantes da área de Radiologia e Diagnóstico por Imagem que estarão presentes na 49ª edição do Congresso Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem, que acontecerá entre os dias 4 a 11 de Outubro de 2020, facilitando a geração de conhecimento e conexões científicas e profissionais.

Nos vemos lá!

Por: Lília Porto (autora) e Raphael Aguiar e Dr. Leonardo Aguiar (editores e revisores)